terça-feira, 23 de outubro de 2012

O dia em que o ônibus parou


Se tem algo que posso agradecer a São Paulo é pelo verdadeiro estágio sociológico, antropológico e emocional que tem me proporcionado. Em meio a tantos milhões de moradores, consigo tirar, quase que diariamente, uma história que vale a pena ser dividida.

Hoje foi assim. Estava pegando o meu segundo ônibus para ir para a casa, já cansada pelo longo trajeto, quando escutei um choro forte, como que de uma criança. Ao me virar para entender o que estava acontecendo, vi o trocador debruçado sobre a caixinha de dinheiro, chorando inconsolavelmente. Ali, vi um homem magrinho e pequenininho, que, provavelmente, nascera com uma deficiência física. Mas, apesar da estatura e do choro forte, quem estava diante de mim era um homem de verdade, que se viu fragilizado por um acontecimento do destino. Sua namorada acabara de lhe ligar, dizendo que a mãe havia falecido. Curiosamente, quem chorava era o genro, mas como um filho verdadeiro.

O ônibus parou. Todos olhavam para ele com um semblante assustado ou de impotência diante de seu choro que ficava cada vez mais alto e forte. Em minha cabeça, milhares de coisas passavam, mas, naquele momento, eu só pensei em rezar e rezar, pedindo a Deus que aliviasse a dor daquele pequeno grande homem. Após ele se acalmar, seguimos viagem, mas ainda escutávamos alguns soluços baixos, indicando um choro guardado.

Uma mulher foi, então, falar com ele. Escutei-o dizendo que a sogra morava em outra cidade e que a namorada tinha ido visitá-la no fim de semana.  A mulher assumiu o discurso e somente ouvi o final: “ah, a vida é assim, né? Todos nós esperamos morrer um dia e bom... Foi o que aconteceu”. Confesso que assustei-me com a frieza dela. Seria um reflexo de uma dor passada, a assimilação da vida em um grande centro ou a falta de palavras certas para consolá-lo, mesmo que bem intencionada? O fato é que não resolveu. Com o ônibus em movimento, escutei novamente um choro forte e quando olhei para a direção em que ele ficava, o vi sentado no chão, agora ainda mais pequenino e frágil, com as mãos nos olhos enxugando as lágrimas que caíam. Meu coração apertou, mas, diferentemente da mulher, não consegui ter a mesma coragem de ir consolá-lo, talvez por também não ter as palavras perfeitas para aliviar a sua dor.

Vi uma mulher de branco se levantar. Provavelmente uma enfermeira, acredito. Ela aproximou-se dele e falou-lhe algumas palavras em seu ouvido e, lentamente, ele foi se acalmando. Talvez a sua experiência em lidar com dores e sofrimentos diários a fizera preparada para ajudá-lo naquele momento difícil. Porque a vida é assim: ela nos prepara com exercícios práticos. Quanto mais lidamos com os obstáculos em nosso caminho ou nos caminhos de quem convivemos, mais nos tornamos fortes e maduros.

Alguns minutos depois, chegou o meu momento de descer do ônibus. Eu olhava para o cobrador, sentia uma vontade imensa de me aproximar, de ajudar, dizer algo, mas, ao mesmo tempo, enxergava a minha impotência para resolver o problema.

Desci do ônibus, caminhei um pouco e parei. Pensei em tudo o que acontecera e busquei entender o que significou a manifestação da dor daquele rapaz. Provavelmente, ele se colocou no lugar da mulher amada, que perdera a mãe e certamente estaria desconsolada. Muita gente poderia duvidar que um homem pequenino, com estatura quase que de uma criança, pudesse ter um relacionamento sério, um apoio e um amor a zelar. E ao vê-lo chorando, percebi o valor que essa pessoa tem em sua vida. Ela tem tamanha importância que ele conseguiu sentir a dor dela e não se conteve, mesmo diante dos vários olhares curiosos e amedrontados. Que bela lição de amor! Ainda que muita gente possa olhá-lo com pena (o que, infelizmente, ainda é um sentimento natural em nossa sociedade - e não me excluo desse meio), ele tinha alguém que o valorizava com ser humano, que o amava como homem e que o escolhera também para dividir a sua dor.

Foi um momento paradoxal, de uma fusão de vários sentimentos ao presenciar uma cena tão inusitada. Mas saí dali certa de que somente uma coisa irá curar a tristeza que ele sentira: o amor. O amor que ele tem para dar a sua namorada e o que tem a receber dela. O amor que ele sentiu dessas voluntárias que tentaram ajudá-lo. E o amor de ter sido “visto” de verdade, mesmo que, para isso, precisasse chorar e dividir a sua dor conosco.

Ninguém é tão forte que não possa fraquejar. E ninguém é tão fraco que não possa usar dessa mesma fraqueza para mostrar a grandeza de sua alma. 

Um comentário:

  1. Amei o final. Quero anotá-lo em algum lugar. Até a fraqueza pode revelar fortalezas q achávamos nao ter. Fica a reflexão.

    Tenho vergonha de citar a fonte, mas em 'As Panteras', existe uma passagem q casa com o q escreveu. Ela se refere ao fato de o coração ser um musculo. Com nossas dores, erros, aprendizados, ele recebe marcas sim, mas tb se fortalece. Nunca me esqueci deste sentindo sobre um orgão tão importante.

    Eu nao sei lidar com a morte. Aceito-a, mas nao sei o q dizer. Qd alguem está de luto, fico perto, olhando, rezando, mandando vibrações. Não sei o q dizer. Pareço até insensível.

    Um dia serei, ou seremos, como a enfermeira da historia que sabia o q manifestar. Chego até evitar velórios. Como se comportar? Sempre q vou, me policio pra ao cumprimentar qq um, dizer: 'Tudo bem?'Claro q nao está tudo bem! Estamos num velório.

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