terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A alegria "oásis" que fez a diferença


Poderia não estar escrito no roteiro da vida, mas era uma obra fantástica do destino. A predestinação do encontro se fazia acontecer por atração de almas, a necessidade de que uma tocasse a outra e mudasse, para sempre, a sua percepção da existência. Um convite para o casamento de uma amiga querida, uma história de amor que merecia ser celebrada e a oportunidade única de rever amigos: não poderia recusar, mesmo que a distância tentasse ser um obstáculo. Venci o tempo e os quilômetros e lá estava eu, ao lado de conhecidos, pessoas com quem convivi durante quatro anos, e desconhecidos. Mas havia algo diferente. Olhava para os então novatos em minha história e sentia-os muito mais perto que estranhos quaisquer.

A festa começou. Todos dançavam alegres, bebiam, comiam e riam, riam muito! Ali era compartilhada aquilo que muitos talvez ainda não experimentaram em sua essência: a alegria em sua manifestação mais simples e pura, o contentamento em dividir algumas horas com pessoas que fizeram a diferença em nossa caminhada. Tão logo as festividades se iniciaram, uma pessoa me chamou a atenção. Estava próximo à churrasqueira, tomava cerveja com uma satisfação e um sorriso impagável no rosto. Dava gargalhadas, beijava os amigos, abraçava-os com um contentamento peculiar. Aquele homem de cabelos brancos, barrigudo e que usava óculos parecia celebrar algo a mais. Chamou-me para dançar e eu, claro, não pude recusar a um convite tão entusiasmado. Demos alguns passos, rodopiamos e começamos a rir de nossa performance desajeitada. Ele se apresentou e continuou a dançar alegremente.

A noite seguiu assim até o sol começar a dar sinais de que estava a chegar. Depois de soltar fogos com os amigos, de nos abraçar mutuamente, de ouvir juras do casal recém unido e de nos divertir como crianças, demos voz ao nosso cansaço e nos repousamos.

Já por volta de meio-dia, levantei-me da cama e ouvi um samba animado que embalava a varanda daquela casa onde acontecera a festa. Senti um cheiro peculiar de churrasco e escutei vozes alegres que cantavam e relatavam histórias. Uma delas me chamou a atenção. Quando desci para ver o que se passava, lá estava ele: o mesmo homem que na noite anterior aproveitara a festa de uma maneira especial continuava a celebrar.

Almoçamos e, quando nos reunimos na cozinha para lavar a louça, ele me convidou a bater as panelas e a cantar. Libertei-me de toda a timidez, peguei uma colher de metal e passei a batucar a panela com força, seguindo a cadência do maestro da alegria! Começamos a rodopiar pela cozinha e cantávamos cada vez mais alto para um público de quatro, cinco pessoas que assistiam com os olhos brilhando. Quando dávamos sinal de que íamos parar, lá vinha ele, engatando uma nova melodia. Assim se seguiu por bastante tempo até que o silêncio pediu para entrar. Não se ouvia mais nada. Todos se olharam, paralisados por algum encantamento. O homem que ora celebrava rompeu a ausência de ruídos e disse-me: “venha aqui e coloque a mão em meu coração”. Sem hesitar, fui até ele e estirei a minha mão até o seu peito. Senti algo estranho e logo tirei, assustada. “Calma, moça, isso é apenas um cateter. É por aqui que entra o veneno que me mantém vivo. Eu tenho câncer em metástase e faço quimioterapia a cada 15 dias”. Mais uma vez, um profundo silêncio tomou conta do ambiente e invadiu os nossos corações. O meu, especialmente, passou a ser dominado por um aperto grande, inexplicável. Ele continuou: “a cada sessão, passo de nove a dez dias prostrado, sem conseguir levantar-me ou comer. Não posso tomar banho por alguns dias para não molhar a sonda e fico praticamente entregue. Mas tenho os meus quatro dias que antecedem uma nova sessão e esses são dias preciosos para mim. Então, o que eu faço? Festa, muita festa! Celebro muito, aproveito cada minuto e chego a esgotar-me de tanto entusiasmo. Assim tenho forças para enfrentar mais uma batalha e  viver a vida com a maior satisfação”.

Não pude responder-lhe. Não tive forças. Naquele momento, senti-me como um grão de areia diante da imensidão do deserto. Quem eu era perto daquele homem, que jamais me aparentou ter alguma doença, o qual eu nunca imaginaria que estaria com um diagnóstico tão grave? Sua alegria foi maior que qualquer desventura do destino. Sua vontade de viver pulsava muito mais forte e dominava o seu corpo de uma maneira tão contagiante que as células doentes mal tinham espaço para se manifestarem. Após esse discurso que emudeceu a todos, ele pegou novamente a panela e recomeçou a cantar. Busquei forças de onde eu nem imaginaria ter, permiti-me ser dominada por aquela satisfação rara e sincronizei meu canto ao seu.

Foi assim que nos conhecemos, que nossas almas trocaram a luz mais verdadeira e que pudemos carregar um pouco de um no outro. Hoje, essa querida pessoa despediu-se desta encarnação, porque sua missão lá em cima certamente será ainda maior. O meu coração, que ora sentiu uma alegria que jamais havia experimentado, hoje chora a perda, mas se contenta pela oportunidade única de ter conhecido esse ser tão especial. A vida segue, com seus tropeços, suas intemperanças, surpresas às vezes nem tão agradáveis. Mas se soubermos extrair a sua verdadeira essência, como esse homem soube fazê-lo com uma maestria impecável, teremos a oportunidade de experimentar por quatro, cinco, dez ou mais dias esse entusiasmo “oásis”, que é capaz de contagiar, iluminar e tocar a essência de quem participa do roteiro de nossa história.

Um comentário:

  1. Lindíssimo!!!!
    Estou sem palavras por vários motivos: pela intensidade, pela destreza, pela força. Relembrei aquele dia, relembrei essa pessoa simples e especial.
    Fará falta, com certeza.

    ResponderExcluir